domingo, 19 de abril de 2009

Povos Indígenas

19 de Abril - Apesar dos avanços, continua a prevalecer o preconceito e o desconhecimento da riqueza no que se refere aos povos Indigenas no Brasil. Assim, neste dia em que comemora-se o Dia do Indio, vale a pena ler como os Povos Indigenas pensam e olham para nós.


Descobrindo os Brancos
Davi Kopenawa Yanomami
Depoimento recolhido e traduzido por Bruce Albert, na maloca Watoriki,
setembro/ 1998

Há muito tempo, meus avós, que habitavam Mõramabi araopi, uma casa situada muito longe, nas nascentes do rio Toototobi, iam às vezes visitar nas terras baixas outros Yanomami estabelecidos ao longo do rio Aracá (como o Toototobi, o Aracá é um afluente do rio Demini, ele próprio
tributário da margem esquerda do rio Negro).
Foi lá que encontraram os primeiros brancos. Esses estrangeiros coletavam
fibra de palmeira piaçaba ao longo do rio Aracá. Durante essas visitas
nossos mais velhos obtiveram seus primeiros facões. Eles me contaram isso
muitas vezes quando eu era criança. Naquele tempo, eles só encontravam
brancos ao viajar muito longe de sua aldeia e não iam vê-los sem motivo,
simplesmente para visitá-los. Haviam visto suas ferramentas metálicas e as
cobiçavam, pois possuíam apenas pedaços de metal que Omama deixara
(os antigos Yanomami possuíam fragmentos de facões e de machados
muito gastos, que obtinham por um complexo circuito de trocas
interétnicas, mas cuja origem atribuíam a Omama, seu herói cultural). Era
durante essas longas viagens que, de vez em quando, eles conseguiam
obter um facão ou mesmo um machado. Trabalhavam então em suas
plantações emprestando-os uns aos outros. Quando um tinha aberto sua
plantação, passava-os a um outro e assim por diante. Eles emprestavam
também essas poucas ferramentas metálicas de uma aldeia a outra.
Não era para procurar fósforos que iam ver os brancos tão longe, não:
tinham seus paus de cacaueiro para fazer fogo. Evidentemente, eles
achavam as panelas de alumínio muito bonitas, mas tampouco era por isso
que faziam aquelas viagens: também tinham vasilhas de terracota para
cozinhar sua caça. Era realmente por seus facões e seus machados que iam
visitar aqueles estrangeiros.
Mas foi bem mais tarde, quando habitávamos Marakana, mais para o lado
da foz do rio Toototobi, que os brancos visitaram nossa casa pela primeira
vez. Na época, nossos mais velhos estavam ainda todos vivos e éramos
muito numerosos, eu me lembro. Eu era um menino, mas começava a
tomar consciência das coisas. Foi lá que comecei a crescer e descobri os
brancos. Eu nunca os vira, não sabia nada deles. Nem mesmo pensava que
eles existissem. Quando os avistei, chorei de medo. Os adultos já os haviam
encontrado algumas vezes, mas eu, nunca! Pensei que eram espíritos
canibais e que iam nos devorar. Eu os achava muito feios, esbranquiçados e
peludos. Eles eram tão diferentes que me aterrorizavam. Além disso, não
compreendia nenhuma de suas palavras emaranhadas. Parecia que eles
tinham uma língua de fantasmas. Eram pessoas da "Comissão" (uma equipe
da Comissão Brasileira Demarcadora dos Limites/ CBDL subiu o rio
Toototobi em 1958-9). Os mais velhos diziam que eles roubavam as
crianças, que já as haviam capturado e levado com eles quando tinham
subido o rio Mapulaú, no passado (Alusão a uma primeira visita da CBDL ao
rio Toototobi, em 1941). Era por isso também que eu tinha muito medo:
estava certo de que também iam me levar. Meus avós já haviam contado
muitas vezes essa história, eu os ouvira dizer: "Sim, esses brancos são
ladrões de crianças!", e tinha muito medo. Por que eles levaram aquelas
crianças? Eu me pergunto isso ainda hoje.
Quando aqueles estrangeiros entravam em nossa habitação, minha mãe me
escondia debaixo de um grande cesto de cipó, no fundo de nossa casa. Ela
me dizia então: "Não tenha medo! Não diga uma palavra!", e eu ficava
assim, tremendo sob meu cesto, sem dizer nada. Eu me lembro, no entanto
devia ser realmente muito pequeno, senão não teria cabido debaixo daquele
cesto! Minha mãe me escondia pois também temia que os brancos me
levassem com eles, como tinham roubado aquelas crianças, da primeira
vez. Era também para me acalmar, pois eu estava aterrorizado e só parava
de chorar quando estava escondido. Todos os bens dos brancos me
assustavam também: tinha medo de seus motores, de suas lâmpadas
elétricas, de seus sapatos, de seus óculos e de seus relógios. Tinha medo
da fumaça de seus cigarros, do cheiro de sua gasolina. Tudo me assustava,
porque nunca vira nada de semelhante e ainda era pequeno! Mas, quando
seus aviões nos sobrevoavam, eu não era o único a ficar assustado, os
adultos também tinham medo; alguns chegavam mesmo a romper em
soluços, e todo mundo fugia para a mata vizinha! Nós somos habitantes da
floresta, não conhecíamos os aviões e estávamos aterrorizados.
Pensávamos que eram seres sobrenaturais voadores que iam cair sobre nós
e queimar todos. Todos tínhamos muito medo de morrer! Eu me lembro que
também tinha medo das vozes que saíam dos rádios e da explosão dos fuzis
que matavam a caça. Perguntava-me o que todas aquelas coisas que
pareciam sobrenaturais poderiam ser! Perguntava-me também por que
aquelas pessoas tinham vindo até nossa casa.
Mais tarde, realmente comecei a crescer e a pensar direito, mas continuei a
me perguntar: "O que os brancos vêm fazer aqui? Por que abrem caminhos
em nossa floresta?". Os mais velhos me respondiam: "Eles vêm sem dúvida
visitar nossa terra para habitar aqui conosco mais tarde!". Mas eles não
compreendiam nada da língua dos brancos; foi por isso que os deixaram
penetrar em suas terras dessa maneira amistosa. Se tivessem
compreendido suas palavras, acho que os teriam expulsado. Aqueles
brancos os enganaram com seus presentes. Deram-lhes machados, facões,
facas, tecidos. Disseram-lhes, para adormecer sua desconfiança: "Nós, os
brancos, nunca os deixaremos desprovidos, lhes daremos muito de nossas
mercadorias e vocês se tomarão nossos amigos!". Mas, pouco depois,
nossos parentes morreram quase todos em uma epidemia, depois em uma
outra. Mais tarde, muitos outros Yanomami novamente morreram quando a
estrada entrou na floresta (A BR-210, Perimetral Norte, aberta em 1973-4 e
abandonada em 1976, depois de cortar duzentos quilômetros a sudeste do
território yanomami) e bem mais ainda quando os garimpeiros chegaram ali
com sua malária. Mas, dessa vez, eu tinha me tomado adulto e pensava
direito; sabia realmente o que os brancos queriam ao penetrar em nossa
terra.
Descobrir o Descobrimento
Os brancos são engenhosos, têm muitas máquinas e mercadorias, mas não
têm nenhuma sabedoria. Não pensam mais no que eram seus ancestrais
quando foram criados. Nos primeiros tempos, eles eram como nós, mas
esqueceram todas as suas antigas palavras. Mais tarde, atravessaram as
águas e vieram em nossa direção. Depois, repetem que descobriram esta
terra. Só compreendi isso quando comecei a compreender sua língua. Mas
nós, os habitantes da floresta, habitamos aqui há longuíssimo tempo, desde
que Omama nos criou. No começo das coisas, aqui só havia habitantes da
floresta, seres humanos (a autodesignação dos Yanomami -yanomae thëpësignifica
antes de tudo "seres humanos", e se aplica também aos outros
índios, opondo-se aos animais, aos seres sobrenaturais e aos não-índios/
napëpë). Os brancos clamam hoje: "Nós descobrimos a terra do Brasil!".
Isso não passa de uma mentira. Ela existe desde sempre e Omama nos
criou com ela. Nossos ancestrais a conheciam desde sempre. Ela não foi
descoberta pelos brancos! Muitos outros povos, como os Makuxi, os
Wapixana, os Waiwai, os Waimiri-Atroari, os Xavante, os Kayapó e os
Guarani ali viviam também. Mas, apesar disso, os brancos continuam a
mentir para si mesmos pensando que descobriram esta terra! Como se ela
estivesse vazia! Como se os seres humanos não a habitassem desde os
primeiros tempos!
Os brancos foram criados em nossa floresta por Omama mas ele os
expulsou porque temia sua falta de sabedoria e porque eram perigosos para
nós! (os brancos foram criados por Omama a partir do sangue de um grupo
de ancestrais Yanomami devorados por lontras e jacarés numa grande
enchente provocada pela quebra de um resguardo menstrual). Ele lhes deu
uma terra, muito longe daqui, pois queria nos proteger de suas epidemias e
de suas armas. Foi por isso que os afastou. Mas esses ancestrais dos
brancos falaram a seus filhos dessa floresta e suas palavras se propagaram
por muito tempo. Eles se lembraram: "É verdade! Havia lá, ao longe, uma
outra terra muito bela!", e voltaram para nós. Na margem desta terra do
Brasil aonde eles chegaram viviam outros índios. Esses brancos eram pouco
numerosos e começaram a mentir: "Nós, os brancos, somos bons e
generosos! Damos presentes e alimentos! Vamos viver a seu lado nesta
terra com vocês! Seremos seus amigos!". Era com essas mesmas mentiras
que tentavam nos enganar desde que também chegaram a nós. Depois
dessas primeiras palavras de mentira eles foram embora e falaram entre si.
Depois voltaram muito numerosos. No começo, sem casa nesta terra, ainda
mostravam amizade pelos índios. Tinham visto a beleza desta floresta e
queriam se estabelecer aqui. Mas desde que se instalaram realmente, desde
que construíram suas habitações e abriram suas plantações, desde que
começaram a criar gado e a cavar a terra para procurar ouro, esqueceram
sua amizade. Começaram a matar as gentes da floresta que viviam perto
deles.
Nos primeiros tempos, os seres humanos eram muito numerosos nesta
terra. É o que dizem nossos mais velhos. Não havia doenças perigosas,
sarampo, gripes, malária. Estávamos sozinhos, não havia garimpeiros para
queimar o ouro, fábricas para produzir ferro e gasolina, carros e aviões. A
floresta e os que a habitavam não estavam o tempo todo doentes. Foi
apenas quando os brancos se tomaram muito numerosos que sua fumaçaepidemia
xawara começou a aumentar e a se propagar por toda parte. Essa
coisa má se tomou muito poderosa e foi assim que as gentes da floresta
começaram a morrer (a expressão xawara wakëxi, "epidemia-fumaça",
designa aqui a um só tempo as epidemias e a poluição, às quais é atribuída
a mesma origem: a fusão do ouro, dos metais e dos carburantes extraídos
da terra para produzir as mercadorias dos brancos e abastecer seus
veículos). Quando viviam sem os brancos nossos ancestrais não tinham
fábricas, caçavam e trabalhavam em suas plantações para fazer crescer seu
alimento. Também não sujavam todos os rios como esses brancos que
agora procuram ouro em nossas terras.
"Nós descobrimos estas terras! Possuímos os livros e, por isso, somos
importantes!", dizem os brancos. Mas são apenas palavras de mentira. Eles
não fizeram mais que tomar as terras das gentes da floresta para se pôr a
devastá-Ias. Todas as terras foram criadas em uma única vez, as dos
brancos e as nossas, ao mesmo tempo que o céu. Tudo isso existe desde os
primeiros tempos, quando Omama nos fez existir. É por isso que não creio
nessas palavras de descobrir a terra do Brasil. Ela não estava vazia! Creio
que os brancos querem sempre se apoderar de nossa terra, é por isso que
repetem essas palavras. São também as dos garimpeiros a propósito de
nossa floresta: "Os Yanomami não habitavam aqui, eles vêm de outro lugar!
Esta terra estava vazia, queremos trabalhar nela!". Mas eu, sou filho dos
antigos Yanomami, habito a floresta onde viviam os meus desde que nasci e
eu não digo a todos os brancos que a descobri! Ela sempre esteve ali, antes
de mim. Eu não digo: "Eu descobri esta terra porque meus olhos caíram
sobre ela, portanto a possuo!". Ela existe desde sempre, antes de mim. Eu
não digo: "Eu descobri o céu!". Também não clamo: "Eu descobri os peixes,
eu descobri a caça!". Eles sempre estiveram lá, desde os primeiros tempos.
Digo simplesmente que também os como, isso é tudo.
O Povo das Mercadorias
Quando viajei para longe, vi a terra dos brancos, lá onde havia muito tempo
viviam seus ancestrais. Visitei a terra que eles chamam Eropa. Era sua
floresta, mas eles a desnudaram pouco a pouco cortando suas árvores para
construir suas casas. Eles fizeram muitos filhos, não pararam de aumentar,
e não havia mais floresta. Então, eles pararam de caçar, não havia mais
caça também. Depois, seus filhos puseram-se a fabricar mercadorias e seu
espírito começou a obscurecer-se por causa de todos esses bens sobre os
quais fixaram seu pensamento. Eles construíram casas de pedra, para que
não se deteriorassem. Continuaram a destruir a floresta, dizendo-se: "Nós
vamos nos tornar o povo das mercadorias! Vamos fabricar muitas delas e
dinheiro também! Assim, quando formos realmente muito numerosos,
jamais seremos miseráveis!". Foi com esse pensamento que eles acabaram
com sua floresta e sujaram seus rios. Agora, só bebem água "embrulhada",
que precisam comprar. A água de verdade, a que corre nos rios, já não é
boa para beber.
Nos primeiros tempos, os brancos viviam como nós na floresta e seus
ancestrais eram pouco numerosos. Omama transmitiu também a eles suas
palavras, mas não o escutaram. Pensaram que eram mentiras e puseram-se
a procurar minerais e petróleo por toda parte, todas essas coisas perigosas
que Omama quisera ocultar sob a terra e a água porque seu calor é
perigoso. Mas os brancos as encontraram e pensaram fazer com elas
ferramentas, máquinas, carros e aviões. Eles se tomaram eufóricos e se
disseram: "Nós somos os únicos a ser tão engenhosos, só nós sabemos
realmente fabricar as mercadorias e as máquinas!". Foi nesse momento que
eles perderam realmente toda sabedoria. Primeiro estragaram sua própria
terra antes de ir trabalhar nas dos outros para aumentar suas mercadorias
sem parar. Nunca mais eles se disseram: "Se destruirmos a terra, será que
seremos capazes de recriar uma outra?".
Quando conheci a terra dos brancos isso me deixou inquieto. Algumas
cidades são belas, mas seu barulho não pára nunca. Eles correm por elas
com carros, nas ruas e mesmo com trens debaixo da terra. Há muito
barulho e gente por toda parte. O espírito se toma obscuro e emaranhado,
não se pode mais pensar direito. É por isso que o pensamento dos brancos
está cheio de vertigem e eles não compreendem nossas palavras. Eles não
fazem mais que dizer: "Estamos muito contentes de rodar e de voar!
Continuemos! Procuremos petróleo, ouro, ferro! Os Yanomami são
mentirosos!". O pensamento desses brancos está obstruído, é por isso que
eles maltratam a terra, desbravando-a por toda parte, e a cavam até
debaixo de suas casas. Eles não pensam que ela vai acabar por
desmoronar. Eles não temem cair no mundo subterrâneo. Porém, é assim.
Se os "brancos-espíritos-tatus-gigantes" [mineradoras] entram por toda
parte sob a terra para retirar os minérios, eles vão se perder e cair no
mundo escuro e podre dos ancestrais canibais (o universo yanomami
compõe-se de quatro níveis superpostos suspensos em um "grande vazio";
o mundo subterrâneo foi formado pela queda do nível terrestre na aurora
dos tempos; é habitado pelos ancestrais Yanomami da primeira
humanidade, que se tornaram monstros canibais - os aõpataripë).
Nós, nós queremos que a floresta permaneça como é, sempre. Queremos
viver nela com boa saúde e que continuem a viver nela os espíritos
xapïripë, a caça e os peixes. Cultivamos apenas as plantas que nos
alimentam, não queremos fábricas, nem buracos na terra, nem rios sujos.
Queremos que a floresta permaneça silenciosa, que o céu continue claro, que a escuridão da noite caia realmente e que se possam ver as estrelas. As
terras dos brancos estão contaminadas, estão cobertas de uma fumaça epidemia-
xawara que se estendeu muito alto no peito do céu. Essa fumaça
se dirige para nós mas ainda não chega lá, pois o espírito celeste Hutukarari
a repele ainda sem descanso. Acima de nossa floresta o céu ainda é claro,
pois não faz tanto tempo que os brancos se aproximaram de nós. Mas bem
mais tarde, quando eu estiver morto, talvez essa fumaça aumente a ponto
de estender a escuridão sobre a terra e de apagar o sol. Os brancos nunca
pensam nessas coisas que os xamãs conhecem, é por isso que eles não têm
medo. Seu pensamento está cheio de esquecimento. Eles continuam a fixálo
sem descanso em suas mercadorias, como se fossem suas namoradas.

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