sábado, 7 de julho de 2012
“A Amazônia continua sendo um apelo à Igreja”, diz cardeal
Por Ormano Sousa e Ércio Santos
Cerca de 1.200 pessoas lotaram na
noite da última sexta-feira, 6, a igreja do Santíssimo Sacramento, em Santarém
(PA), no encerramento do 10º Encontro dos Bispos da Amazônia, que celebrou os
40 anos do Documento de Santarém. Os bispos reafirmaram na celebração a tônica
do documento que ratifica o compromisso da Igreja com os povos da Amazônia e a
defesa da ecologia.
“A Amazônia continua sendo um
apelo à Igreja, um lugar permanente de missão”, sentenciou Dom Cláudio Hummes,
cardeal presidente da Comissão Episcopal para a Amazônia que presidiu a
celebração. Segundo ele, a região, por suas características próprias, requer
uma atitude profética da Igreja, sobretudo considerando que estas terras sempre
foram vistas como uma fonte de riquezas exploradas continuamente.
O profetismo, disse o cardeal, exige
atitudes que estão relacionadas à promoção humana. “A promoção humana faz parte
da evangelização e para que isso aconteça é necessário combater toda forma de
opressão sobre o povo”. No final, Dom Cláudio declarou que o encontro lhe
fortaleceu o ardor missionário e reconheceu vigor da Igreja nesta região.
O evento contou com a
participação do secretário geral da CNBB, Dom Leonardo Steiner, de 35 bispos e dezenas de religiosos e lideranças, dentre estes
alguns que estão sob constante vigilância de segurança em virtude da postura em
defesa dos povos – denúncias contra a exploração sexual de crianças,
adolescentes e mulheres, tráfico de drogas e de pessoas, trabalho escravo – e por
denunciarem a exploração ilegal dos recursos da Amazônia.
Momento histórico
A celebração teve um tom festivo,
com elementos simbólicos evidenciando as características da região, pelo desfecho
do evento histórico. Momento de tal envergadura aconteceu em 1972, quando os
bispos lançaram a Carta de Santarém em que definiram o pensamento unânime quanto
à ação da Igreja na Amazônia.
Naquela ocasião a região era
vista como uma “terra abandonada”. Com essa visão, o governo federal implantou
um programa de colonização com o lema “homens sem terra para terra sem homens”.
Grandes estradas foram abertas, dentre estas a Transamazônica, e no entorno
destas grandes rodovias foram criadas agrovilas que, posteriormente, com o
avanço populacional, se tornaram cidades.
O documento firmado pelos bispos
40 anos atrás, via profeticamente o que viria a acontecer no futuro próximo. A
visão da igreja da época veio a se consolidar com a exploração da Amazônia e de
seus povos.
Agora, o documento de 2012,
reconhece que, embora se registrem avanços no campo social e político, as
explorações também acompanham essa proporção.
O documento final – no formato de
carta ao povo – foi lido na celebração pelo arcebispo de Manaus, Dom Luís
Soares Vieira, destacando o compromisso missionário, profético e com os povos
da região. O documento oficial será publicado posteriormente.
Abaixo, a carta dos bispos ao
Povo de Deus, na íntegra.
Irmãs e
irmãos caríssimos em Cristo Jesus,
Povo de
Deus na Amazônia,
“Não tenha medo, cotinue a falar e não se cale,
pois eu estou contigo“ (At 18,9)
“Cristo
aponta para a Amazônia“ lembrava o Papa Paulo VI aos bispos da Amazônia por
ocasião de seu encontro em Santarém, de 24 a 30 de maio de 1972, marco
indelével na história da Igreja desta grande região brasileira, habitada por
povos de culturas e tradições tão diferenciadas do outro Brasil.
Expressamos
nossa gratidão ao Deus da vida porque nestes 40 anos, não obstante nossas
fragilidades, nossa Igreja tem anunciado Jesus Cristo ressuscitado, caminho,
verdade e vida e tem marcado presença junto ao povo sofrido, sendo muitas vezes
a voz dos povos indígenas, ribeirinhos, quilombolas, seringueiros e migrantes,
nas periferias e em novos ambientes do centros urbanos animando as comunidades
na reivindicação do respeito pela sua história e religiosidade. É também a vida
destes povos, seu modo de viver, sua simplicidade, seu protagonismo, sua fé que
nos encantam! Não faltou o testemunho de entrega da própria vida até o
derramamento de sangue. Este testemunho nos anima, nos encoraja e nos fortalece.
São também protagonistas religiosos e religiosas, pastorais, movimentos e
serviços que tem sido uma força viva e atuante na realidade das nossas
comunidades.
Constatamos avanços no campo social
e político, com novos organismos de participação, conselhos de políticas
públicas, participação nas campanhas por leis mais justas, aumento da
consciência e engajamento na questão ecológica. No campo econômico, cresce o
consumo e o poder aquisitvo embora nem sempre acompanhado do aumento da
qualidade de vida. A vida na Amazônia continua sofrida.
Há
séculos os povos da Amazônia gemem e choram sob o peso de um modelo de desenvolvimento
que os oprime e exclui do “banquete da vida, para o qual todos os homens e mulheres são
igualmente convidados por Deus“ (SRS 39). A Igreja
ouve os gritos, às vezes desesperados, e se identifica com o seu clamor,
conhece o seu sofrimento. Mais ainda, a Igreja declara que “as alegrias e
esperanças, as tristezas e as angústias dos homens e mulheres, sobretudo dos
pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças,
as tristezas e angustias dos discípulos de Cristo“ (cf. GS 1).
As
decisões sobre o desenvolvimento da Amazônia sempre são tomadas a partir de
fora e visam unica e exclusivamente a exploração das riquezas naturais sem
levar em conta as legítimas aspirações dos povos desta região a uma verdadeira
justiça social. Quando
Paulo VI declarava que “o desenvolvimento é o novo nome da paz“ (PP 87), não
pensava num “crescimentismo“ meramente econômico, unilateral e excludente, mas
convidava a todos os povos da terra a empenhar-se por um mundo justo, fraterno
e solidário, na perspectiva do Reino que Jesus veio a anunciar “para que todos
tenham vida“ (Jo 10,10).
Como
quarenta anos atrás, a Amazônia continua sendo considerada a “colônia“, mesmo
que abranja mais da metade do território nacional. Para a metrópole – Brasília,
o sudeste e o sul do País – Amazônia é apenas “província“, primeiro província
madeireira e mineradora, depois a última fronteira agrícola no intuito de
expandir o agronegócio até os confins deste delicado e complexo ecossistema,
único em todo o planeta. De uns anos para cá a “província“ recebeu mais um
rótulo, sem dúvida o mais desastroso, pois implicará a sua destruição
programada, haja visto o número de hidrelétricas projetadas para os próximos
anos: a Amazônia é declarada a província “energética“ do País. Sob a alegação
de gerar energia limpa se esconde a verdade de que mais florestas sucumbirão,
mais áreas, inclusive urbanas, serão inundadas, milhares de famílias serão
expulsas de suas terras ancestrais, mais aldeias indígenas diretamente
afetadas, mais lagos artificiais, podres e mortos, produzirão gases letais e se
tornarão viveiro
propício para todo tipo de pragas e geradores de doenças endêmicas.
A
história da Amazônia revela que foi sempre uma minoria que lucrava às custas da
pobreza da maioria e da depredação inescrupulosa das riquezas naturais da
região, dádiva divina para os povos que aqui vivem há milênios e os migrantes
que chegaram ao longo dos séculos passados.
Santarém 1972: Encarnação na Realidade e
Evangelização Libertadora
Como
já em 1972, os bispos reunidos em Santarém de 2 a 6 de julho de 2012 não
detectam apenas os mecanismos perniciosos responsáveis pela miséria dos povos e
a devastação das florestas, mas os denunciam como responsáveis de gerar “ricos
cada vez mais ricos às custas e pobres cada vez mais pobres“ (João Paulo II,
Discurso inaugural de Puebla, 28 de janeiro de 1979) e de um meio-ambiente cada
vez mais deteriorado. O “lar“ (em grego “oikos“ – daí a palavra “ecologia“) que Deus criou
para todos nós não pode ser explorado até a exaustão, mas exige cuidado, zelo,
amor, também em vista das futuras gerações. Os
cientistas alertam sempre mais que a devastação da Amazônia terá consequências
irreversíveis para o clima do planeta e se torna assim uma ameaça à vida e
sobrevivência de toda a humanidade.
Em 1972
os bispos da Amazônia já identificaram graves feridas neste mundo de selvas e
águas que atingiram violentamente os povos originários e tradicionais da
região. Como
40 anos atrás, também hoje os bispos se entendem como mensageiros dos povos da
Amazônia, profetas que vivem numa grande proximidade com Deus e ao mesmo tempo
sintonizados com os acontecimentos históricos, homens de fé que „vêm da grande
tribulação“ (Ap 7,14). Nestes nossos tempos,
as feridas se tornaram chagas abertas que perpassam e sangram a Amazônia de
fora a fora, causando cada dia mais vítimas fatais.
As prioridades da ação pastoral e evangelizadora
apontadas em 1972 continuam atualíssimas. Até hoje uma formação adequada à essa
região para ministros ordenados, mas também para leigas e leigos que dirigem as
comunidades, é fundamental. Importa encarnar a Igreja no chão concreto da
Amazônia. Quem exerce um ministério, ordenado ou não, participa do pastoreio de
Jesus e está a serviço de seus irmãos e irmãs e quer exercê-lo na simplicidade
do lava-pés e numa proximidade fraterna ao Povo de Deus.
As Comunidades Cristãs ou Eclesiais de Base tão
recomendadas no Documento Santarém 1972 são expressão de uma Igreja viva e
comprometida. Como os bispos já afirmaram em Manaus (2007), elas constituem um
dom especial que Deus concedeu à Igreja na Amazônia. São obra do Espírito
Santo. O que o Documento de Aparecida afirma, aplica-se de modo especial à
Amazônia. As CEBs, diz o documento, “têm
sido escolas que têm ajudado a formar cristãos comprometidos com sua fé,
discípulos e missionários do Senhor, como o testemunha a entrega generosa, até
derramar o sangue, de muitos de seus membros” (DAp 178). As CEB’s são também
uma resposta válida e empolgante para o mundo urbano como resposta ao
individualismo e a superficialidade do consumismo. Nas CEBs se vive a dimensão
samaritana da compaixão ativa e interajuda, de um coração e mãos abertas para
quem sofre ou passa necessidade, mas também a dimensão profética de anunciar
continuamente a utopia do Reino e, ao mesmo tempo, denunciar todos os
mecanismos e estruturas que impedem a chegada do Reino. É exatamente esta
dimensão profética que gerou as e os mártires da Amazônia. As CEBs
constituem-se em família das famílias onde todos se conhecem e querem bem, mas
são também centros de oração e meditação da Palavra de Deus para nutrir a
mística profunda da vivência na proximidade de Deus. Ele mesmo se revelou como
um Deus-conosco e assegurou aos profetas, apóstolos, discípulas e discípulos:
“Eu estarei contigo“ (cf. Ex 3,14; Js 1,9; Jr 1,19; At 18,9-10). Afinal “se
Deus está conosco, quem será contra nós“ (Rom 8,31).
Santarém 1972 assume a questão
indígena como causa de toda a Igreja na Amazônia. Lembra que no mesmo ano por
iniciativa dos bispos, mormente dos da Amazônia, foi fundado o Conselho
Indigenista Missionário – Cimi.
Os
bispos talvez não imaginavam quarenta anos atrás o imenso apoio que sua decisão
significava aos direitos e à sobrevivência de dezenas de povos indígenas na
região amazônica que, sem o empenho intransigente da Igreja, teriam
desaparecido. A presença solidária e o apoio incondicional à luta por seus
direitos foi fundamental para que hoje a maioria dos povos indígenas da região
tenha suas terras demarcadas. Foi também de enorme importância gerar uma
consciência de respeito e valorização dos povos, suas culturas e seus projetos
de “Bem Viver“. Dezenas de povos saíram do silêncio em que foram forçados a se
ocultar para sobreviver. Ressurgiram das cinzas e estão lutando pelos seus direitos
e suas terras. Alem disso a atuação corajosa dos missionários, selando seu
compromisso através do sangue derramado pela vida desses povos, propiciou o
surgimento de articulações e organizações dos povos indígenas, essenciais para
a conquista de seus direitos e sua autonomia.
Os
riscos de extermínio de vários grupos indígenas em estado de isolamento
voluntário, exige um renovado compromisso com a sobrevivência de milhares de
vidas e povos ameaçados de extinção.
Na perseverança salvareis vossas vidas (Lc 21,19)
Deparamo-nos hoje com uma verdadeira enxurrada de
grandes projetos que os Governos querem implantar, seguindo a estratégia do
“fato consumado“. Não há discussão, nem consulta popular que merecesse este
nome. Decide-se e executa-se. Oponentes são criminalizados ou taxados de
inimigos do progresso. Também os ribeirinhos, seringueiros, quilombolas, e
outros povos tradicionais sofrem pela falta de recohnecdimento de suas terras.
A ética na política prometida à nação e esperada
pelo povo brasileiro cedeu lugar a uma sequencia ininterrupta de escândalos de
corrupção em todos os níveis governamentais.
Somado a estes desafios nos
deparamos com a emergência do fenômeno urbano, com o inchaço nas periferias das
grandes cidade, exploração sexual, tráfico de pessoas e de drogas, violência.
Em vez de investimentos em políticas públicas de saneamento básico, saúde,
educação e segurança, o Estado prioriza políticas compensatórias, apoia e
incentiva o grande capital, investe na construção de estádios monumentais e
outras obras faraônicas.
“Podem roubar-nos tudo, menos a esperança” (D.
Pedro Casaldáliga). No caminho de “Santarém”, novamente nos lançamos nas
estradas e rios, nas aldeias e quilombos, nos interiores e periferias das
cidades, nos grandes centros urbanos desta imensa Amazônia, abraçando a Missão
que nos foi confiada, comprometidos com toda a criação e na busca de sermos
autênticas comunidades de fé alimentadas pela Palavra e pela Eucaristia. Nesta
hora da história o nosso coração às vezes, se angustia por causa de tantas
dificuldades que nos desafiam, aparentemente insuperáveis; no entanto,
continuamos a ser chamados e enviados como missionários e profetas para
alimentar a esperança, como âncora firme e segura (cf Hb 6,19), de um mundo
novo, inaugurado por Jesus Cristo Crucificado e Ressuscitado..
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